A PORTEIRA


"Dizem que "de corajosos", os cemitérios estão cheios.
Portanto cuidado ao brincar com as coisas do "Além", pois a vítima poderá ser o próprio pregador de peças!"


O Relato a seguir mostra como isso pode acontecer!

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No interior da Cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul [Coordenadas GPS (Latitude / Longitude): 30° 4'58.00"S, 51° 1'30.00"W] – que quando isso aconteceu, uns cinqüenta, sessenta anos atrás, era “mais interior ainda” –, entre as regiões conhecidas como Faxina, Pimenta e Cantagalo (cujos limites não eram bem definidos, então), deu-se um caso muito intrigante.

Naquelas estradas rústicas onde veículos sobre rodas (fossem carros, caminhões ou mesmo carroças) pouco transitavam, o meio de locomoção do homem do campo para grandes distância era principalmente o cavalo.
Quem era de lá pouco saía da região: asfalto era coisa rara, e uma viagem para a cidade, se não fosse de carona com os caminhões que levavam a produção das pequenas propriedades, era coisa de um dia ou mais.
Os empregados das estâncias, chácaras e querências então, nos seus raros momentos de folga e socialização, iam para um bolicho* que lá havia, para beber, conversar e saber das notícias.

(*) Bolicho: estabelecimento comercial que é uma mistura de bar, armazém de secos e molhados, pequeno bazar, agropecuária... Ainda bastante comum no Sul do Brasil e no Uruguai, d’onde a palavra é originária.

Mas eis que neste lugar, n’um entardecer de domingo, os homens se reuniram para uma bebida e um carteado, um joguinho de pife, e d’entre eles dois se destacavam.
Uns vizinhos meus, guris naquela época, lembram deles, mas não tenho permissão para divulgar o nome de ninguém neste relato.

Ocorre que o primeiro destes dois homens era metido a não ter medo de nada, mas como era muito “gavola” (contador de vantagens), tinha certa fama de mentiroso quanto à sua coragem.
Mas também tinha fama de briguento, e por isso ninguém lhe duvidava na cara dos seus feitos e conquistas tão exagerados.
O outro era um legítimo “come-quieto”: sabiam de algumas de suas peripécias e, principalmente, casos amorosos, mas ele em si de nada falava ou se gabava, e sequer confirmava quando questionado, limitando-se a rir.

Era, e é, de se estranhar, mas ambos eram amigos.
Nesse dia o papo correu solto.
Tão solto que poucos notaram a noite chegar.
Bebida, noite quente e bonita, o jogo já cansando... Logo começaram as histórias, e histórias de assombração.

Todo mundo tinha pelo menos uma para compartilhar.
E, quem mais contava, era sem dúvida o Gavola.
Uma mais absurda (e heróica) que a outra, e o pessoal se segurando...
Mas eis que ele conta que, de certa feita, cavalgava numa noite de lua cheia e um lobisomem se bota nele, que brabo do susto puxou do relho e chicoteou o bicho “pra aprender a não assustar cavalo manso”, e o pessoal se segurando...

Quando então fez uma comparação do entre a sua imagem com o lobisomem e São Jorge com o Caído em forma de Dragão, afinal “a Lua ‘tava lá”, o pessoal não segurou mais e a risalhada foi geral.
Como era de se esperar, o Gavola ficou bravo, xingou, bateu na mesa e chutou banco, montou no cavalo e foi embora.
Claro que isso deixou um clima ruim no lugar, afinal todos ali eram amigos e, no fundo, queriam bem ao Gavola, que apesar de... gavola, era boa companhia e um homem trabalhador.

Eis que o Come-Quieto teve uma idéia: ia dar um susto no outro e, assim, talvez, esse perdesse um pouco da pose e não levasse tão por mal as brincadeiras da companheiragem.
Outros não arriscariam algo assim, mas ele era daqueles que se arriscava – até demais –, e arriscaria ter a raiva do amigo para não perder a oportunidade de fazer o que hoje chamamos “sacanear”.

A estrada por onde o Gavola seguiu fazia uma grande curva fechada, em “C”, e terminava em uma antiga porteira que se dizia mal-assombrada.
Cada um contava uma história diferente do lugar, mas todos concordavam que era um lugar sinistro e que, no mínimo, causava um grande mal-estar em quem por ali passasse, e por isso ninguém gostava de passar por ali, com aquela imensidão de campos e mato e ninguém por perto.
Principalmente sozinho. Principalmente à noite.

“Todo extremo esconde seu oposto”, dizem.
Se o Gavola gostava tanto de contar causos de coragem, principalmente frente ao “outro mundo”, é porquê algum medo ele tinha, pensava o Come-Quieto.
Ele, que não acreditava nessas coisas, idealizou o seguinte: cortaria caminho pelo mato que existia entre o “C” da estrada, seguindo uma linha reta entre o bolicho e a porteira e chegando lá antes do Gavola.
Então ele deitaria sobre a travessa da porteira, que era suficientemente larga, e quando o amigo se preparasse para apear (descer) do cavalo, que estaria parado naquele ponto, ele, de cima, lhe tiraria o chapéu, dando um susto.

Rindo depois de contar o plano aos outros, e sem tempo a perder, atravessou à estrada em frente ao bolicho e se embrenhou no mato.
Momentos depois, pela estrada, o Gavola chegava à porteira, apreensivo por estar naquele lugar, mas o cavalo estava calmo, e era crença (na época e ainda hoje) que os cavalos “sentem” coisas do outro mundo (e talvez sintam mesmo), e a calma do cavalo o acalmava, também.
Chegou em frente à velha porteira e, quando se preparava para descer do cavalo e abrir, alguma coisa tirou seu chapéu.
Ainda olhou em volta, mas o chapéu não havia caído, e sim sumido!

Uma risada perto demais, naquele lugar onde ele não via ninguém, foi o suficiente para ele fazer o cavalo voltar a todo galope pela estrada por onde tinham vindo.
Cruzou em frente ao bolicho e seguiu fugindo.
Aquela noite passou no galpão de uns amigos: não ia voltar a passar pela porteira.

Noutro dia foi até lá acompanhado de dois amigos, e foi um deles que encontrou seu chapéu sobre a travessa da porteira.
Voltaram e foi a história ser contada para o riso tomar conta do lugar: no fim, até o Gavola acabou por rir da peça que o Come-Quieto lhe pregou, e o riso teria continuado se dois fregueses habituais não tivessem entrado com expressões tristes e assustadas.
Uns disseram que foi algum marido traído, ou outro tipo de desafeto vingativo.
Outros disseram que foram bandidos, ou desses loucos que matam pessoas e ninguém descobre o real motivo (se é que há algum). Falaram até em coisas do outro mundo, embora tenha ficado muito claro que aquilo era “coisa com faca”.

No matagal que existia entre o bolicho e a porteira velha jazia morto o Come-Quieto, esfaqueado pelas costas enquanto ia fazer uma brincadeira com o amigo Gavola.

E fica para imaginação do leitor saber quem pegou o chapéu e riu do medo do cavaleiro, já que o Come-Quieto morreu antes de fazer a brincadeira planejada.

A porteira, até onde sei, está lá até hoje. A estrada mudou, mas ninguém a tirou de lá: apenas a deixam aberta, no meio do campo.

Pensei em ir até lá, tirar uma foto e colocar junto deste texto, mas não fui.

Quando ocorreu a oportunidade, eu teria de ir sozinho.



Carlos - Canela - Rio Grande do Sul - Brasil